Intertimento

Não se admire ou pense que eu escrevi errado, o nome é "Intertimento" mesmo, algo de significado parecido com entretenimento. O que se busca aqui é interagir com uma linguagem simples e cotidiana, de forma a garantir a todos o entendimento acerca dos assuntos tratados.

quinta-feira, 2 de abril de 2015


A maior injustiça do mundo
Por que o sofrimento amoroso é tratado como um fato da vida enquanto outras formas de dor são criminalizadas?

Tenho a impressão, frequentemente, que a presença da injustiça ao nosso redor é subestimada. Não é apenas a falsa meritocracia brasileira que me incomoda. Milhões de pessoas que não tiveram oportunidades competindo por emprego e prestígio com milhares que desde crianças tiveram todas as chances de desenvolver o seu potencial. Ou então as mulheres, que precisam provar o seu valor como profissionais mas têm, ao mesmo tempo, de atender as demandas sociais que não recaem sobre os homens - como o cuidado com a família, a casa e os filhos. Essas coisas são injustas e passam impunes pela nossa sensibilidade. Convivemos com a falsa meritocracia e com a exclusão profissional das mulheres – e dos negros brasileiros – como se fossem coisas normais. Não são.

Da mesma forma, ignoramos o que talvez seja a mais comum e a mais dolorosa das injustiças – a de amar sem ser amado. Essa é uma dor tão comum que a sua onipresença nos cega para a sua tragédia. Pensem nisso. Uma pessoa feliz e produtiva pode ser reduzida ao estado de miséria emocional por causa de um amor não correspondido. A dor dela é imensa e essencialmente incompreensível para quem olha de fora. As pessoas desmoronam, perdem empregos, se matam (e os psicopatas matam) por causa de amores desencontrados. Sentem-se, fundamentalmente, injustiçadas. Injustiçadas pela vida, pela atitude do outro, pelo próprio sentimento de amor que se volta contra elas e as fere. E estão cobertas de razão.

Nós somos ensinados, desde crianças, que a vida exige equilíbrio. Não podemos comer todos os doces da mesa ou pegar todos os brinquedos. Da mesma forma, podemos esperar que as outras crianças nos passem a bola durante o jogo de futebol e que nos deem lugar na gangorra ou no balanço depois de brincar alguns minutos. Quando essas coisas não acontecem, nos frustramos. Nosso senso de equilíbrio e justiça infantil é rompido. Assim para o resto da vida. Esperamos que nos ofereçam o equivalente daquilo que oferecemos. Se formos educados, queremos educação. Se formas respeitosos, queremos respeitos. Faz parte da relação de equilíbrio que estabelecemos com o mundo. O senso de justiça e proporção é profundo em nós. Quando se fazem experimentos científicos, fica claro que as pessoas recusam propostas vantajosas se sentirem que estão sendo de alguma forma passadas para trás. Parece haver dentro de nós um sensor subjetivo que sugere quando estamos sendo tratados com justiça e quando não. Diante da injustiça, sofremos e reagimos.

Frente ao amor, é igual. Ao nos apaixonarmos, esperamos que o outro também se apaixone por nós. É a nossa expectativa natural. Quando isso não acontece, sofremos um golpe. Experimentamos a rejeição como uma dor quase física, verdadeiramente intolerável. Parte dessa dor terrível, eu acho, deriva do senso de justiça violado. Como é possível tamanho desequilíbrio? Como eu posso estar aqui, quase sem poder respirar, incapaz de pensar em outra coisa, tomado por um sentimento avassalador, e aquela pessoa mal sabe que eu existo? Ou, ainda pior, como essa pessoa que foi minha esqueceu de mim tão completamente que a minha dor e meus sentimentos nada significam para ela? Como viver com tamanha injustiça?

Para quem sofre de amor, não existe um tribunal de reparação. Não se pode alegar, diante de um juiz imparcial, que aquela pessoa não poderia ter deixado de nos amar. Que fizemos tudo por ela. Que lhe demos o melhor dos nossos sentimentos. Não se pode dizer: “Eu amo loucamente, sem essa pessoa minha vida não faz sentido, a dor que eu sinto na ausência dela é intolerável. Tenho medo de enlouquecer, de morrer. Tenho medo de me tornar incapaz – para o trabalho, para a família, para a vida”.

Que tipo de tribunal receberia esse pedido, julgaria a causa procedente e obrigaria a outra parte a nos amar de novo, loucamente - a rir das nossas piadas, a se encantar com o nosso jeito, a perder a cabeça com o nosso corpo e com aquilo que fazemos com o corpo dela?

Sim, porque não se trata apenas de ter alguém de volta. Ou que alguém se junte a nós. Exigimos ser amados. Queremos alguém feliz ao nosso lado. Precisamos sentir as vibrações da sua admiração. O desejo que vem da outra pessoa tem de ser palpável e voltado para nós. Assim nos sentimos bonitos, importantes, queridos.

Na incapacidade de prover isso tudo, a sociedade se limita a oferecer uma forma menos feliz de reparação – a vingança legal.

Terminado o casamento, esgotado o relacionamento, podemos recorrer a um bom advogado para atormentar a vida de quem deixou de nos amar. Podemos humilhar, sufocar e empobrecer. Podemos tornar ele ou ela muito infeliz. Não nos trará felicidade, claro. Mas pode dar algum dinheiro e preencher com ódio o nosso senso de justiça violado.

Mas deixemos de lado as questões legais e os litígios na vara de família. A maioria das pessoas que sofrem de amor não pode recorrer a essa forma de acerto de contas.Só os que foram casados dispõem desse intrumentos. Para os demais, a vida oferece um paradoxo: algumas formas de sofrimento são toleradas e outras não.

A lei reconhece o direito de nos queixarmos de quem nos inflige sofrimento físico. É crime bater e torturar. Modernamente, aprendemos a reconhecer até as formas psicológicas de opressão. A humilhação, a imposição de terror, as ameaças. O assédio moral. Sabemos que não é preciso tocar o outro para provocar dor.

No entanto, a dor amorosa, que deve ter posição elevada no ranking do sofrimento, não é criminalizada. Posso seduzir e abandonar sem que o outro possa dar queixa na delegacia. Posso enjoar do outro depois de 5, 10 ou 20 anos de relacionamento e trocá-lo por alguém mais jovem, ou mais rico, ou mais bonito, ou mais feliz, ou mais magro, ou mais sensual, ou simplesmente mais recente. Não importa. Esses movimentos são inteiramente livres, a despeito da dor que provoquem em terceiros.

Se alguém nos empurra na rua ou nos ofende, temos instrumentos legais que nos permitem exigir reparação. A sociedade reconhece a justeza dessas causas. Mas, ao sermos abandonados, ou trocados, ou traídos ou simplesmente ignorados, não interessam os nossos mais dolorosos sentimentos. Somos livres para sofrer e para fazer os outros sofrerem por amor em qualquer escala. Se por amor uma adolescente passa a noite chorando ou um quarentão pula do viaduto às duas horas da manhã, dá na mesma. Essa não é uma preocupação da Justiça. A violência física e psicológica exige a intervenção do Estado. A violentíssima ruptura afetiva permanece uma questão privada.

Faz sentido isso?

Não acho, nem por um momento, que essas questões da esfera privada deveriam ser levadas à atenção das autoridades. Não mesmo. Já temos nossa cota de intervenção do Estado no cotidiano. Apenas aponto o que me parece um paradoxo: há dores que são consideradas socialmente intoleráveis, enquanto outras são tratadas como fatos da vida. Por quê? Eu não tenho resposta. Me parece, apenas, que na escala de valores da nossa sociedade a afetividade e seus problemas ainda ocupam um lugar de menor importância – embora talvez não devessem.

Se observarmos o mundo com outro olhar, perceberemos que há uma dose imensa de problemas sociais vinculados às questões afetivas. Gente de coração rompido bebe, agride, negligencia o trabalho e os filhos. O país ganha acidentes, crimes, traumas e perde produtividade. Os deprimidos por amor formam uma legião enorme e constante, que pode ser encontrada diariamente nas escolas, nas fábricas e nos escritórios, fazendo muito menos do que poderia. O sofrimento romântico é uma espécie de doença não reconhecida.

Um exemplo simples: quando se casam, as pessoas têm direito à licença matrimonial. Quando se separam, não têm direito a nada. Nem à complacência do chefe. Por isso as pessoas faltam, se fingem de doentes quando estão prostradas no sofá, ou se arrastam para o escritório e passam o dia relendo e-mails em busca de pistas para o desfecho inesperado e doloroso. Choram no banheiro. Não espanta que o país patine em patamares medíocres de produtividade. Somos uma nação de românticos e sentimentais. Sofremos de dor de cotovelo o tempo todo.

No futuro, quando não tivemos mais que competir com asiáticos que trabalham 70 horas por semana sem direito a férias, será possível olhar para esse pedaço do sofrimento humano com mais generosidade trabalhista. Todo mundo que já sofreu por amor sabe que essa é uma experiência debilitante. Centenas de vezes pior que um resfriado. Às vezes, trabalhar ajuda. Em outras ocasiões, atrapalha. Cada caso é especial em si mesmo. O essencial é que as pessoas possam entrar no médico da firma – ou no psicólogo, se algum dia formos um país mais civilizado – e afirmar o óbvio: “Doutor, acabei de acabar um relacionamento de dois anos e estou profundamente deprimido. Não dá para trabalhar”. Não há vergonha nenhuma nisso.

No momento, a afetividade continua sendo subestimada como fonte de sofrimento e de injustiça. As pessoas que se abatem demais com essas coisas são tratadas como fracas. Ou hipersensíveis, que é uma forma de chamar de doente. O romantismo exacerbado, ao contrário da vontade exacerbada de ganhar dinheiro, por exemplo, é tratado como uma espécie de imaturidade mental e afetiva. Todos nos irritamos com aquele amigo que 6 meses depois de um caso encerrado continua sofrendo como se tivesse acabado ontem. Gente assim se torna chata, pesada. Pessoas que se recusam a recomeçar. Eu me pergunto se também nesses casos não existe uma sensação subterrânea de injustiça que bloqueia os sentimentos e impede a pessoa de tocar a vida.

Outro dia, li que até meados do século XX as crianças não recebiam analgésicos depois de cirurgias porque se julgava, com base na melhor ciência da época, que elas eram incapazes de sentir dor como os adultos, por causa de uma suposta imaturidade neurológica. Vem só: do ponto de vista educacional e psicológico, as crianças antigas eram tratadas como adultos de 1,20 m de altura. Aptas a serem severamente disciplinadas. Do ponto de vista físico, julgava-se que não fossem capazes de sentir dor. Os dois conceitos nos parecem medievais à luz da ciência atual. O que será que o futuro nos reserva a respeito dos sentimentos amorosos? Será que olharemos para os românticos patéticos de hoje como vítimas de uma injustiça social subestimada, de uma situação psicológica e social intolerável?

Não sei. O que é absolutamente seguro é que dentro de algumas décadas não lidaremos com essas questões da forma como lidamos hoje. Os sentimentos a respeito dos sentimentos mudam acentuadamente através da história. A nossa ideia atual sobre o amor pareceria ridícula a um cidadão da Roma de Júlio César. O amor romântico de Romeu e Julieta – que é mais ou menos o nosso, inclusive nas suas fantasias adolescentes – foi adotado coletivamente por volta da época em que se descobriu o Brasil. Antes disso, as pessoas se amavam, claro, mas não achavam que tinham direito a ter seus sentimentos realizados. Nem julgavam que eles eram uma prioridade. Antes do amor, na ordem das coisas, vinha Deus, o rei, a família, a honra. Agora, não. Somos indivíduos autônomos frente à sociedade e ao mercado. Exigimos que nossos sentimentos sejam levados à sério. Temos direitos que incluem, na linguagem americana, a liberdade e a busca da felicidade. Se as nossas aspirações por direitos continuarem a se expandir nas próximas décadas como vieram se expandindo nas anteriores, chegaremos – por que não? – à afirmação jurídica da necessidade de sermos amados. Constará da Constituição! Afinal, o que é a vida e como é possível a felicidade sem amor?

Quando esse momento chegar, talvez venhamos a processar os amantes que nos abandonem. Assim como as pessoas que recusem o nosso afeto. Aqueles que não nos desejam e nos fazem sofrer serão levados à barra dos tribunais. Todos, enfim, que nos ferem com a indisposição de nos amar. Eles cometem contra nós uma tremenda injustiça!

Depois do estatuto do idoso e da criança – justos e necessários, sem qualquer ironia - faremos o Estatuto do Apaixonado. Ele dirá que aquele que ama não poderá ser desamado sem aviso prévio e sem preparação. Terá, naturalmente, de ser indenizado por suas imensuráveis (e reais) perdas afetivas. As sessões de aconselhamento de casais, que hoje são optativas, se tornarão mandatórias – será preciso convencer o psicólogo ou assistente social que há motivos suficientes para deixar de amar. Não bastará estar apaixonado por outra pessoa. Não bastará ter perdido o desejo ou o interesse humano pelo outro. Que insensibilidade, que violência, que alegações egoístas! Para deixar de amar, para sair de uma relação afetiva como pessoa de bem, haverá de se alegar razões concretas: violência, mau hálito, mau gênio, inapetência sexual inequívoca. Ruptura por livre e espontânea vontade? Nem pensar. O que o amor uniu, só a Justiça separa.

Se isso parece a vocês opressivo e exagerado, eu concordo. Não é esse o mundo em que queremos viver. É bom saber que a pessoa ao lado segura a nossa mão por que deseja. Não prestaria se fosse de outro jeito. Se não fosse totalmente espontâneo, se não fosse inteiramente involuntário, não teria graça alguma. Claro, existe o risco de que ele ou ela mude de sentimentos a qualquer momento. Quando ela virar o rosto ao seu beijo ou ele parecer constrangido com o seu abraço, será horrível. Mas é assim que são as coisas entre nós. O preço da nossa felicidade é o risco da inconstância. Ela é humana, talvez seja inevitável, e como tantas outras dores neste lindo planeta em que tudo morre e renasce, não pode ser evitada. A morte do amor, como todas as outras mortes, é uma injustiça irreparável.
IVAN MARTINS

Sugestão da seguidora SINARA MARINHO


Fonte:http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/03/maior-binjusticab-do-mundo.html

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